Claude Zilberberg : o semioticista e o esteta

Norma DISCINI

Universidade de São Paulo

https://doi.org/10.25965/as.6335

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Mots-clés : esthésie, phorie, sensible, style, tensivité

Auteurs cités : Algirdas J. GREIMAS, Fernando PESSOA, Ferdinand de SAUSSURE, Luiz TATIT, Claude ZILBERBERG

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Texte intégral

A notícia da morte de Claude Zilberberg sobreveio à progressão de nossos dias. Sem se anunciar e principalmente sem prevenir, a morte chegou a nosso querido semioticista. No espaço que segue, ao fazer um sobrevoo pela teoria tensiva, que ele fez avançar, procuro reencontrá-lo como sujeito de seu próprio estilo. Enquanto isso, procuro interrogar o lugar do leitor no interior de suas obras. Ao fim — e desde o começo, embora — procuro, quem sabe, fazer uma homenagem, inacabada certamente, para aquele que sempre merecerá o mais do mais.

1. Estesia e estilo : entre medidas e divisibilidade

Note de bas de page 1 :

Zilberberg, inquieto com as duas direções tensivas, aumento e diminuição, que operam no espaço tensivo (o espaço do qual desponta o sujeito sensível), cita passagem de A Poética do Espaço, de Bachelard (1988), para comentar que ambos os procedimentos citados pelo filósofo (a imensidão íntima e a intensidade do ser) são aumentativos. Lembrando a hipérbole, pensada na perspectiva tensiva, apresenta-a ligada à concessão, por sua vez aliada do imprevisto. Acrescenta que “somente a via concessiva merece o título de hipérbole”. Cf. Cl. Zilberberg, Elementos de semiótica tensiva, São Paulo, Ateliê Editorial, 2006, p. 202.

Se na sua origem grega o termo “esteta” significa “aquele que sente”, Claude Zilberberg é duplamente um esteta. Primeiro, porque ele próprio se mostra na vivência de uma “imensidão íntima” de seu pensamento teórico — imensidão, que é “uma intensidade do ser”, como ele sugere ao referir-se a estudo contido em obra de Bachelard1. Depois, porque, ao formalizar princípios que cuidam da regência do inteligível pelo sensível, ele desenvolve tópicos relativos a uma estética de viés imanentista, não descolada das questões relativas à constituição do sujeito sensível. Se, de um lado, os fundamentos de uma “linguística estrutural”, tal qual apresentada por Hjelmslev, socorrem Zilberberg no rigor das minúcias que arquitetam a “gramática tensiva”, se ele aponta para as bases do pensamento de Greimas, bem como para o trabalho desenvolvido em coautoria com Fontanille, de outro lado, textos de poetas como Baudelaire e de filósofos como Valéry estabelecem fontes que alimentam a progressão da teoria, na medida em que viabilizam resoluções para as “hipóteses tensivas”.

Note de bas de page 2 :

A.J. Greimas, Sobre o sentido II : ensaios semióticos, São Paulo, Nankin-Eduspp, 2014, p. 107.

Note de bas de page 3 :

Diz Zilberberg : “La tensivité est le lieu, ou le front, où se joignent, se rejoignent l’intensité au titre de somme des états d’âme et l’extensité au titre de somme des états de choses”. Cl. Zilberberg, La structure tensive, Liège, Presses Universitaires de Liège, 2012, p. 17.

Note de bas de page 4 :

Cf. Elementos de Semiótica Tensiva, op. cit., p. 51.

Um dos saltos dos estudos da tensividade é a mobilização de instrumentos para que se perscrute o sujeito como actante vindo das profundidades figurais, em que se levam em conta os afetos mensuráveis em aumento e em diminuição e cotejados com a temporalidade e a espacialidade do “estado das coisas”. Se a tradição semiótica, com Greimas, faz vir à tona, ao lado do “sujeito do fazer”, o sujeito “paciente”, “que recebe, passivo, todos os estímulos do mundo, inscritos nos objetos que o cercam”2 — o sujeito de estado, que tem sua existência modal determinada pela relevância do objeto — Zilberberg traz à luz o sujeito à mercê do que sobrevém como acontecimento extraordinário (l’événemment). Assim se mobilizam, com força ou tonicidade extrema, os “estados de alma”, não desvinculados do “estado das coisas”. Mas, com atenção à tensividade — definida como “o lugar, ou a frente, em que se unem e se encontram a intensidade, como soma dos estados de alma e a extensidade, como soma dos estados das coisas”3 — e com atenção ao princípio de gradação, que torna mensurável o impacto do sensível sobre o inteligível, Zilberberg prevê uma “eventualidade forte” e uma “eventualidade tênue”4. Por meio de tais postulados iluminam-se as fronteiras entre a semiótica e a estética.

Note de bas de page 5 :

Cf. La structure tensive, op. cit., p. 152.

Note de bas de page 6 :

Cf. Elementos de Semiótica Tensiva, op. cit., p. 261.

Note de bas de page 7 :

Ibid., p. 261, La structure Tensive, op. cit., pp. 152-153.

O sensível alarga-se como estesia constituinte de todo enunciado e é apresentado como função de uma foria não restrita à timia fundamental. Para além da categoria semântica, considerada na estrutura elementar da significação como bipartida em euforia e disforia, é apresentada uma foria que “tem o mérito de dinamizar o quadrado semiótico”5 ; uma foria que, mediante fluxos e refluxos, faz virem à luz as “oscilações tensivas”, apresentadas na ordem do contínuo ; uma foria, cujos componentes se organizam “mais como vetores do que como traços”, mais como gerúndios que como particípios6. Entre esses vetores destaca-se o elã, concebido como o próprio movimento7.

Note de bas de page 8 :

Cf. F. Saussure, Curso de Linguística Geral, 1970, p. 136.

Note de bas de page 9 :

Cf. Cl. Zilberberg, Razão e poética do sentido, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 36.

A noção de um fluxo fórico contínuo apresenta raízes no conceito de transfusão de valores. Além do valor, entendido como puramente diferencial por Saussure8, e visto como determinado, no jogo de xadrez, pela relação estabelecida entre as funções desempenhadas pelas peças, vem à tona, com Zilberberg, mais do que a oposição entre as peças, a interdependência entre elas. O semioticista alerta para o fato de que “à medida que as peças vão desaparecendo, as (...) restantes absorvem seu valor de tal maneira que mesmo um peão, cujo valor inicial é mínimo, simples máscara, cresce em valor, caso subsista”9.

Assim pensado, o caso do peão do jogo de xadrez joga luzes sobre as condições de emergência do fato poético, criadas de modo compatível com a intensificação da estesia. A estesia, como componente sensível da construção do sentido, passa a apresentar-se como suscetível de quantificações, isto é, passa a ser mensurável em sílabas tensivas. O mais do mais, por exemplo, refere-se ao ultrapassamento, ou ao recrudescimento recursivo da energeia, da tonicidade ou do “acento do sentido” ; o menos do mais ancora a atenuação de impacto, a decadência da tonicidade imprimida na semiose. Tais oscilações, ancoradas num “nível tensivo”, amparam a identificação de diferentes estéticas.

Note de bas de page 10 :

Cf. L. Tatit, “Claude Zilberberg e a prosodição da semiótica”, in C.M. Mendes e G.M.P. Lara, Em torno do acontecimento : uma homenagem a Claude Zilberberg, Curitiba, Appris, 2016, p. 21.

Em relação à construção do sentido, o pressuposto (nível tensivo), levado em conta como o que tem força propulsora sobre o pressuponente, engendra a foria, como um fluxo orientado e acidentado que alterna seus “afluxos” com momentos de “refluxo”10. Desse modo o sensível, considerado como elemento estético em gradação de tonicidade ou energeia, permite pensarmos que tudo tem estilo. Zilberberg oferece condições para que se descreva o estilo nascente de gêneros midiáticos, de gêneros do campo das artes, entre outros campos, bem como para que se descrevam estilos “de época” e aqueles autorais.

Note de bas de page 11 :

Cf. A.J. Greimas e J. Courtés, Dicionário de Semiótica, São Paulo, Contexto, 2008, verbete “Ator”, p. 45.

Note de bas de page 12 :

Cf. La structure tensive, op. cit., p. 21.

Note de bas de page 13 :

A expressão “anormal” está empregada em acepção equivalente àquela que aparece em estudo feito por Greimas, quando o semioticista critica o privilégio concedido ao que é “individual”, ao que é “anormal”, no âmbito de determinada história literária. Cf. A.J. Greimas, “L’actualité du saussurisme”, in id., La mode en 1830, Paris, Presses Universitaires de France, 2000, pp. 377-378.

Note de bas de page 14 :

“L’âme est l’événement d’un Trop ou d´un trop peu. Elle est par excès ou par défaut. ‘Normalement’ n’existe pas”. Cf. La structure tensive, op. cit., p. 19.

Uma estilística que cuida do sujeito como estrutura, actancial e actorial, mas como uma estrutura aberta ao “acontecimento” — traz à luz “o ator da enunciação”11, examinado junto à “coalescência do sensível e do inteligível”12 : o sensível, que, aumentado em força de impacto, virtualiza os contornos das coisas ; o inteligível, que, prevalente, devolve às coisas sua divisibilidade. O conceito semiótico de estilo deixa de ser cotejado com “o anormal”13 — e deixa de remeter a um desvio, pensado em relação à linguagem ordinária. Além disso, passa a agregar a noção de uma “intensidade vivida” e “mensurada” — a qual Zilberberg respalda nestas formulações de Valéry : “A alma é o acontecimento de um Demais ou de um pouco demais. Existe pelo excesso ou pela falta. ‘Normalmente’ não existe”14.

2. Zilberberg e seu leitor : um “estilo concessivo”

Note de bas de page 15 :

Os tradutores, tendo identificado a presença de “pervir” no português do século XIV, explicitam o emprego desse termo na tradução de “parvenir”. Cf. Elementos de Semiótica Tensiva, op. cit., p. 271.

Note de bas de page 16 :

Ibid., p. 277.

Note de bas de page 17 :

Ibid., p. 271.

Note de bas de page 18 :

A.J. Greimas e J. Fontanille, ao discutir a relação entre tempo e aspecto, ressaltam a importância do “tempo íntimo dos sujeitos da experiência e da percepção, denominado ‘andamento’ por Cl. Zilberberg”; (“le temps intime des sujets de l’éxperience et de la perception, appelé ‘tempo’ par C. Zilberberg) ; cf. id., “Avant-Propos”, in J. Fontanille (éd.), Le discours aspectualisé, Actes du coloque “Linguistique et Sémiotique”, 1991, p. 15.

Na semiótica tensiva, o sujeito sensível — apresentado como aquele que se põe à mercê daquilo que chega de modo brusco (o que evoca, em francês, o verbo survenir) — carrega consigo a tensão entre a surpresa (e a veemência afetiva que ela acarreta) e a rotina. Ao sobrevir (substantivação, em português, do verbo survenir) se associa o pervir (nominalização do verbo parvenir)15. Ambos os termos, o sobrevir e o pervir, definidos em reciprocidade, apresentam-se, conforme Zilberberg, como “duas maneiras pelas quais uma grandeza ingressa no campo de presença e ali se estabelece”16. Em relação à temporalidade, vista como duração, logo aspectualmente compreendida, o sobrevir está para a instantaneidade e a indivisibilidade ; o pervir, para a duratividade e a progressividade17. Em relação ao andamento — ou o “tempo” (mediante uso do termo italiano) — o sobrevir está para a celeridade ; o pervir, para a lentidão18. No intervalo entre o sobrevir e o pervir é posto em desenvolvimento, a partir dos enunciados zilberberguianos, o corpo do leitor : o enunciatário-destinatário, filtro e coprodutor do sentido.

Cravado entre a extensidade, alinhada à rotina e ao pervir, e a intensidade, alinhada ao “acontecimento” e ao sobrevir, o leitor oscila entre a instantaneidade das próprias perguntas, que irrompem da apresentação progressiva da teoria, e a desaceleração das ideias, recuperada na sequência de uma, de outra, e de mais outra “liquidação da falta”. Aqui, na desaceleração, se compõem as respostas vislumbradas. Zilberberg cria um ritmo tensivo na práxis que compõe a leitura de seus textos.

Na ânsia incitada pelas interrogações recursivamente emergentes dos textos em estudo, o enunciatário, como produto das estratégias do enunciador, é lançado para uma área de tonicidade aumentada, vinda do próprio pensamento científico. A instalação em tal zona, pertencente ao “espaço tensivo”, se, de um lado, faz o sujeito escapar à cercadura da implicação e acolher o imprevisto no trato com a epistemologia — de outro, não deixa de oferecer meios para que esse mesmo sujeito seja devolvido à busca pela lentidão, imprescindível para que se recuperem as demarcações dos conceitos.

Ao sabor das interrogações — favorecidas, por exemplo, pela abrupta aparição de versos de Baudelaire, que antecipam preceitos teóricos ou sucedem a eles — o enunciatário incorpora o andamento rápido da teoria. Nessa disposição, virtualiza as segmentações do conhecimento e as classificações feitas “às claras”. Entretanto, pouco a pouco, e sem nunca ter deixado de fazê-lo, o leitor passa a contemplar a previsibilidade oferecida pela hierarquização conceitual. Ao longo do ato de leitura, fazendo par com o sobrevir, que abrevia a temporalidade da apreensão, volta a ser prevalente o pervir, com o vagar previsto. Para estes últimos momentos, sentidos como de “repouso”, são relevantes, em especial, os diagramas da tensividade. Frequentes, os gráficos e os esquemas favorecem o alongamento da temporalidade de leitura, enquanto se difundem, entre uma e outra síntese gráfica, as respostas. No vai-e-vem próprio ao ritmo, o enunciatário se encontra devolvido à progressão lenta das formulações teóricas.

Note de bas de page 19 :

Cf. Elementos de Semiótica Tensiva, op. cit., verbete “Extensivo”, p. 259.

Note de bas de page 20 :

Ibid., verbete “Pervir”, p. 272.

Note de bas de page 21 :

“Il est manifeste que l’antagonisme vécu du travail et du jeu est du ressort de la grammaire tensive”. Cf. La structure tensive, op.cit., p. 27.

Mas permanece, entre uma passagem e outra dos textos, a tensão entre “energia e extensão”19; ou entre “jogo” e “trabalho”20. Na esfera de leitura regulada pelo jogo, é exercido o charme (ou o encanto) como atração ; e a incerteza, como componente da fidúcia. Na esfera do fazer interpretativo controlado pelo trabalho, é prevalente a certeza como fidúcia. Resta aqui, como atração, a própria sabedoria. “É evidente que o antagonismo vivenciado entre o trabalho e o jogo procede da gramática tensiva” 21 – diz Zilberberg, que acrescenta ser o jogo forte, sob o ângulo da intensidade, e intermitente, concentrado em algumas partes, sob o ângulo da extensidade. Para o leitor, a tonicidade forte do jogo concentra-se nas questões não aplacadas.

Note de bas de page 22 :

Elementos de Semiótica Tensiva, op.cit., verbete “Acontecimento”, p. 236.

Note de bas de page 23 :

“La vie n’a qu’un charme vrai ; c’est le charme du Jeu”. La structure tensive, op.cit., p. 27.

Note de bas de page 24 :

Cf. Elementos de semiótica tensiva, op.cit., verbete “Acontecimento”, p. 236.

Em tom de não rara ironia, Zilberberg pergunta : “O que, afinal, deve ser comunicado ao enunciatário senão aquilo que sobrevém e ele ignora ?”22 O “encanto”, que nunca esteve excluído como previsão de leitura, é restabelecido ao longo dos textos sob exame, e é até recrudescido ao longo das obras desse teórico, que não se omitiu em enfatizar este verso de Baudelaire : “A vida tem apenas um ‘encanto verdadeiro ; é o ‘encanto’ do Jogo”23. Alinhado ao jogo, está o “acontecimento”, “correlato objetal do sobrevir24.

Note de bas de page 25 :

Ibid., verbete “Recursividade”, p. 273.

Eis o leitor instituído pelo que é dito e pelo modo zilberberguiano de dizer : um sujeito que, da pauta da programação e do trabalho cotidiano, inclina-se a saltar para o imprevisto, junto ao qual acontece a experiência do pensamento. É a própria natureza do texto zilberberguiano que compõe a posição de leitura afeita ao “jogo”. O “espaço tensivo”, postulado pelo semioticista no interior de seus escritos, sustenta o pensamento teórico e incita o leitor ao “ultrapassamento” — este gesto concessivo de “recrudescer o recrudescimento”, de “ir além” daquilo que poderia ser considerado uma suficiência realizada25.

Note de bas de page 26 :

Cf. Information Rythmique, verbete “Rythme vs Succession ?” , op.cit., p. 60-61.

Note de bas de page 27 :

São estas as palavras de Valéry, citadas por Zilberberg e por ora adaptadas : “Dans le rythme, le successif a quelques propriétés du simultané. (...) Il y a entre antécédents et suivant des liaisons comme si tous les termes étaient simultanés et actuels, mais n’apparaissaient que successivement.” Ibid.

Mas o leitor é um actante do ritmo de leitura previsto pela obra, e ritmo demanda iteratividade. Zilberberg, inquieto por entender como se vai da repetição ao ritmo, chega a interrogar a oposição “Ritmo vs. Sucessão26. Cita então Valéry, para quem, na ligação entre os termos reunidos em sucessão rítmica, tudo se passa como se o antecedente e o subsequente fossem simultâneos, embora apareçam tão somente em sucessão27. No ritmo criado pela obra zilberberguiana, o coenunciador, aliado ao perfil do “jogador”, se num instante se constitui mediante um gesto de “ultrapassamento” concessivo, aos poucos evolui para o âmbito da reflexão : essa reflexão pausada, em que a lógica implicativa é dominante : “Há pergunta, logo há resposta” ; ou : “Ao ‘aberto’ cumpre ser ‘fechado’”.

Note de bas de page 28 :

Cf. La structure tensive, op.cit., pp. 28-29.

Na implicação é privilegiada a extensidade do pensamento científico. Mostra-se aí às claras a arquitetura conceitual da semiótica tensiva. Entretanto, na medida em que as coisas se esclarecem uma a uma, e o tom asséptico de subjetividade, previsto pelo discurso científico, passa a impor-se, é dada ao leitor a sensação de ser um “turista em Paris” : mas um turista, “habitante da província”. Em “meio à multidão”, o leitor passa a sentir o que é “não ser coisa alguma” (n´être rien)28. Ainda bem que, sob o ritmo fórico, transitamos sem atropelo de um lugar a outro.

Note de bas de page 29 :

Ibid.

Note de bas de page 30 :

“Le propre du monde intellectuel est d’être toujours bousculé par le monde sensible”. Ibid., p. 21.

Quando devolvidos ao que irrompe como pergunta inesperada, sentimo-nos restituídos à “província” (ou à identificação com o “estilo concessivo” de Zilberberg). Voltamos a sentir o que é “ser alguma coisa” (être quelque chose)29. Zilberberg põe em prática o pensamento que ele mesmo enfatiza ao citar Valéry : “A peculiaridade do mundo intelectual é ser sempre atropelado pelo mundo sensível”30.

Note de bas de page 31 :

F. Pessoa, “Poemas Completos de Alberto Caeiro”, Obra Poética, Rio de Janeiro, Companhia Aguilar Editora, 1965, p. 236.

Note de bas de page 32 :

“Le sensible, selon la morphologie et la sintaxe qui lui sont propres, n’est peut-être seulement que cette accentuation, cette inégalité créatice, ce contrôle tantôt despotique, tantôt liberal, qu’il exerce sur l’intelligible”. La structure tensive, op. cit., p. 21.

“Sentir é estar distraído”, diz Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa31. “O sensível, conforme a morfologia e a sintaxe que lhe são inerentes, é, talvez, apenas esta acentuação, este desequilíbrio criador, este controle, ora despótico, ora liberal, que ele exerce sobre o inteligível” — diz Claude Zilberberg32. É preciso afastar-se ou distrair-se um pouco do apelo do “universo doxal”, que ampara as predicações, para, mais que entender, viver como experiência o impacto “de l’inégalité créatice” constituinte do cerne da obra de Zilberberg.

Note de bas de page 33 :

Cl Zilberberg, op. cit., p. 27.

Note de bas de page 34 :

Poemas completos de Alberto Caeiro”, op. cit., p. 224.

Com o desafio e a provocação nele implícita, compõe-se o convite para que olhemos para a borboleta, “coisa do mundo”, não como restrita a uma avaliação predicativa ; não como circunscrita à “alternância”, ao “ou... ou” próprio à definição semântica33. Salta daí a possibilidade de passarmos a enxergar o que disse Alberto Caeiro : “No movimento da borboleta o movimento é que se move”. “A borboleta é apenas borboleta” — prossegue o poeta34.

3. Nota final

Note de bas de page 35 :

Razão e poética do sentido, op.cit., p. 140.

Beneficiados pela presença desse teórico em nossas vidas, lamentamos a perda trazida por sua morte. Acontece, porém, que aprendemos com ele mesmo algo importante sobre a parada. Ao tratar a descontinuidade e a continuidade como “produto de dois processos solidários”, Zilberberg afirma : “a descontinuidade é o que para ou se interrompe, a stase, e modaliza o ser como ek-stase, descontração, como aquilo que continua”35.